Uma das maiores heranças que o cristianismo nos deixou foi a culpa. É engraçado (mentira, não é engraçado, é triste pra caralho) como ela nos afetou de maneira universal. Mesmo os mais rebeldes, os mais subversivos, os grupos mais rompantes com relação a sociedade e dogmas seguem aprisionados a ela. A culpa nos invade.
E é claro que a culpa não é só culpa. A ideologia do sacrifício nos aprisiona em uma gaiola de sentimentos negativos: Tristeza, autopunição, glamourização da sofrimento. Parece ser necessário que penemos. Parece que só é válido e verdadeiro aquilo que é fundamentalmente dolorido.
Os movimentos sociais muitas vezes se veem pautados nessa base. Afinal, só existe militância porque o mundo é triste e, portanto, é preciso ser triste com ele. É preciso se doer, se sacrificar, dar o sangue. A ideologia do herói.
“Enquanto te exploram tu grita gol!” é uma pichação muito citada, compartilhada e espalhada por aí em forma de ideias. Teoricamente rompante com a “política do pão e circo” – embora eu, particularmente, encare essa visão como um tremendo elitismo, mas não vamos perder o foco – mas, de forma prática, culpabilizadora. Que feio é “gritar gol” da tua parte, explorado. Rompa logo as tuas amarras! Pare de ser boneco do sistema!
Não, não e não.
Eu, embora partindo do mesmo pressuposto que gera esse ciclo de negativismo, tenho ido cada vez mais para o outro lado. Afinal é exatamente isso: Só existe militância porque o mundo é triste.
Só existe militância porque o mundo é triste.
É por isso que queremos mudar o mundo: Justamente porque ele é triste. Se as pessoas estivessem plenamente felizes com a situação atual não haveria porque grupo nenhum, indivíduo nenhum querer mudar o mundo. Só queremos transformar a realidade porque, embora muitos prefiram ignorar isso, muita gente está triste com o mundo como ele está. O objetivo final é justamente a felicidade. Felicidade coletiva, felicidade genuína. Essa, que só tem como nascer, pautada na liberdade.
Ora e se o objetivo final é a felicidade, por que então essa não pode ser o meio? Pode sim.
Pode gritar gol, pode pular carnaval e amar natal em família. Pode parar de se culpar por tudo o que te disseram ser ridículo, ser vexaminoso, tanto hegemonicamente quanto no que chamamos de grupos de “resistência”. Pode sentir teu corpo e tua consciência e se deixar ser. Porque não gritar gol, não diminui a exploração que você sofre na pele.
Felicidade é resistência.
A felicidade é revolucionária.
Tão revolucionária que incomoda. A infelicidade dos grupos oprimidos socialmente não é apenas combustível para os movimentos sociais, é o triunfo do opressor. A tristeza está a serviço dos que odeiam. É exatamente isso que querem, nos ver penando, aos prantos, agonizando.
Tanto é que as manifestações mais felizes são as que mais incomodam.
A luta séria, severa e sofrida pelo casamento entre pessoas do mesmo gênero incomoda sim, mas não tanto quanto um beijo público (que não envolva 01 homem e 01 mulher, de preferência brancos e magros). Uma demonstração de amor, de afeto, de carinho ou de pura luxúria dessas é extremamente desconcertante para os conservadores. Olhe lá, que ofensivo, estão sendo felizes e sem a nossa autorização!
Voltemeia em uma ou outra manifestação eu costumo soltar frases do tipo “se não posso ficar loucassa, não é minha revolução” ou “se não posso pegar geral, não é minha revolução”. É brincadeira. Mas é verdade.
Tudo o que você faz na sua vida é ela. Faz parte dela. A forma. Cada ato, cada manifestação, cada causa em que você acredita, cada revolução da qual você participa é também parte de você. E eu não quero ser essa culpa, essa tristeza, esse sacrifício. Eu quero que todas as pessoas sejam, livremente felizes. É só por isso que brigo, só por isso que luto.
E é por isso que podemos sim começar por nós. Acho digno. Acho justo.
Acho que o nosso sorriso incomoda quem está contra nós e dá forças a quem é nosso aliado. A felicidade é capaz de empoderar, fortalecer e transformar. Enquanto a culpa nos deixa estagnados, presos em uma sensação improdutiva e a tristeza suga nossas energias, a felicidade é poderosamente mobilizadora, construtiva.
Ser feliz é um ato subversivo.
Quando se está do outro lado, quando não se é alguém do comercial de margarina, quando se vive diariamente as opressões colocadas sobre nós – o machismo, o racismo, a homofobia, a transfobia, o preconceito de classes – sobreviver já é, em si, um combate ao sistema. Sobreviver com um sorriso no rosto, então, é ameaçador.
E maravilhoso.
Não tenhamos medo de nossa própria alegria. Não nos deixemos paralisar pela valorização do sacrifício. Sejamos individual, coletiva e publicamente felizes.