Há alguns anos escrevi esse texto falando sobre a desobediência, sabia que ele teria continuação, mas claramente demorou um cadim. Tudo bem também.
Recentemente a Polícia Militar do Rio de Janeiro matou um menino de dez anos, no Morro do Alemão. Eu não consigo superar, você provavelmente também não está conseguindo e com certeza a população do Morro, que se reuniu nesse sábado em protesto, não consegue superar. Para melhorar, a notícia está sendo veiculada assim, desse jeitinho que só jornalista muito bem pago e sem peso na consciência consegue fazer, nessa matéria o Grupo Globo conseguiu chamar o caso de “bala perdida” (apenas parem).
Tá bem, tem mil tretas que estão fervilhando agora na cabeça de todos nós e que envolvem esse caso, a desmilitarização da polícia, a redução da maioridade penal, a necessidade urgente de democratização da mídia, etc. Mas eu quero falar sobre uma, em específico, que tem me atormentado muito: O proibicionismo.
A população periférica sofre violência extrema na mão da Polícia Militar. Vocês sabem disso, né? Ninguém precisa reforçar isso, quando tem criança de 10 anos recebendo tiro na porta de casa. Ok. Entendido isso, a gente precisa pensar um minutim porque a Polícia sobe o Morro. É para encarcerar estuprador? Não. Assassino em série? Não. Traficante. É por causa do tráfico. Da nossa bonita e eficaz guerra às drogas que tem causado mais mortes no mundo todo do que o efeito de qualquer droga em si.
É importante, antes e mais nada, pensarmos no efeito da Lei sobre nós. Por que a ordem escrita nos influencia tanto, a ponto de a usarmos como argumentação? Sei lá quantas vezes achei ok encerrar discussão com “é crime”, porque afinal esse é um ponto sustentável e, aparentemente, inviolável. Racismo? Crime. Bater em criança? Crime. Violência contra a mulher? Crime. “Não interessa a sua opinião, é crime e se você fizer eu vou te denunciar”, já berrei várias vezes. Assim é mais fácil, entendo hoje que é muito exaustivo depositar nossa energia em discussões sociais e políticas desse tipo e, realmente, essa é uma forma rápida de não se cansar com o tema e ainda deixar a pessoa meio apavorada com a possibilidade de fazer uma dessas babaquices.
Mas então, qual o problema? O problema é que esse argumento não diz nada. O fato de algo ser ou não crime não diz nada. Tudo bem, essas situações em questão estão “do meu lado da moeda” e por isso acabo utilizando para me defender. Mas e aí? Fumar maconha também é crime e eu não acho que as pessoas devam ser presas por isso. Abortar também. Nós formamos em nossa mente uma associação utópica entre Lei e Justiça que simplesmente em termos reais non ecziste. “Estar na lei” é garantia de estar na lei. Só. Acabou. Não diz que algo é justo, correto, bom. Só diz que está na lei.
Associamos nossos parâmetros a algo previamente imposto sem consulta alguma. Chamamos, por exemplo, as drogas ilícitas, de drogas, enquanto as de farmácia são apenas medicamentos, embora causem dependência, efeitos colaterais graves e, por favor, não queira errar um pouquinho na dosagem. Os casos mais graves estão relacionados às drogas psiquiátricas, mas ainda temos aí as aspirinas cotidianas, a pílula anti-concepcional, os anti-inflamatórios e antibióticos que os médicos amam prescrever só “por via das dúvidas” e que são capazes de destruir nosso corpo, enfraquecem tudo o que há dentro dele. Tudo. Mas tudo bem. Porque pode. Está na lei.
A lei não nos fala sobre nosso corpo, nossas necessidades, nossa situação individual. A lei também não nos fala sobre condições sociais, interferências políticas, meios de construção. A lei não é lei. Ela é questionável, contornável, discutível. Não é a toa que existe a advocacia, que existam “atenuantes”.
E a lei não é justa. Especialmente isso. É preciso urgentemente fazer essa desassociação. Vamos lá, voltando a guerra às drogas. O consumo de drogas é feito em todas as classes sociais, embora de diferentes formas, justamente de acordo com o meio, mas de maneira geral, dá para dizer que todo mundo consome drogas, não dá? Ricos e pobres, brancos e negros. Aqui tem um estudo legal sobre isso (mas com dados norte-americanos).
Mas olha só, é bem explícito quem é que pega cadeia por causa do consumo e da venda de drogas. Tá bem claro quem é que é perseguido, quem morre na porta de casa por causa da tal “guerra às drogas”. Até a notícia deixa claro: Quando é negro e pobre, é traficante. Quando é branco é “jovem de classe média” ou “fornecedor de drogas”, quando é político e futuro candidato a presidência da república, é só um mal-entendido.
Ou seja, se você nunca passou um tempo na cadeia, não significa que você não fez nada errado, significa apenas que você nunca foi pego. E você nunca ter sido pego diz muito mais sobre a posição social que você habita, a cor da sua pele, o seu local de fala, do que sobre a sua ética e caráter. Aliás, como lei não é o mesmo que justiça, agir dentro dela não é o mesmo que ser justo, nem honesto, nem de caráter. Se ser “criminoso” é ser apontado e culpado por uma sociedade e sistema carcerários extremamente corrompidos, desumanos e lotados de preconceitos, como vamos pautar nossa esperança nisso? Como vamos confiar nosso senso de justiça nisso? Quem é que está sendo criminoso? Em alguns casos, a própria existência é um crime, aos olhos de quem está em posição de julgamento (digno de intervenção militar, pena de morte, etc).
E ia falar mais um montão, sobre essa cena do senado atual, sobre porque as pessoas insistem tanto para nós ensinarmos nossos filhos a “obedecer”, seguir a lei e gostar de polícia. Mas já falei um montão, né? No fim das contas, é isso, ser fora-da-lei, as vezes é só questão de ser (existir e resistir). Um salve aos clandestinos.