Clandestinos

Há alguns anos escrevi esse texto falando sobre a desobediência, sabia que ele teria continuação, mas claramente demorou um cadim. Tudo bem também.

age20150404102Recentemente a Polícia Militar do Rio de Janeiro matou um menino de dez anos, no Morro do Alemão. Eu não consigo superar, você provavelmente também não está conseguindo e com certeza a população do Morro, que se reuniu nesse sábado em protesto, não consegue superar. Para melhorar, a notícia está sendo veiculada assim, desse jeitinho que só jornalista muito bem pago e sem peso na consciência consegue fazer, nessa matéria o Grupo Globo conseguiu chamar o caso de “bala perdida” (apenas parem).

Tá bem, tem mil tretas que estão fervilhando agora na cabeça de todos nós e que envolvem esse caso, a desmilitarização da polícia, a redução da maioridade penal, a necessidade urgente de democratização da mídia, etc. Mas eu quero falar sobre uma, em específico, que tem me atormentado muito: O proibicionismo.

A população periférica sofre violência extrema na mão da Polícia Militar. Vocês sabem disso, né? Ninguém precisa reforçar isso, quando tem criança de 10 anos recebendo tiro na porta de casa. Ok. Entendido isso, a gente precisa pensar um minutim porque a Polícia sobe o Morro. É para encarcerar estuprador? Não. Assassino em série? Não. Traficante. É por causa do tráfico. Da nossa bonita e eficaz guerra às drogas que tem causado mais mortes no mundo todo do que o efeito de qualquer droga em si.

É importante, antes e mais nada, pensarmos no efeito da Lei sobre nós. Por que a ordem escrita nos influencia tanto, a ponto de a usarmos como argumentação? Sei lá quantas vezes achei ok encerrar discussão com “é crime”, porque afinal esse é um ponto sustentável e, aparentemente, inviolável. Racismo? Crime. Bater em criança? Crime. Violência contra a mulher? Crime. “Não interessa a sua opinião, é crime e se você fizer eu vou te denunciar”, já berrei várias vezes. Assim é mais fácil, entendo hoje que é muito exaustivo depositar nossa energia em discussões sociais e políticas desse tipo e, realmente, essa é uma forma rápida de não se cansar com o tema e ainda deixar a pessoa meio apavorada com a possibilidade de fazer uma dessas babaquices.

Mas então, qual o problema? O problema é que esse argumento não diz nada. O fato de algo ser ou não crime não diz nada. Tudo bem, essas situações em questão estão “do meu lado da moeda” e por isso acabo utilizando para me defender. Mas e aí? Fumar maconha também é crime e eu não acho que as pessoas devam ser presas por isso. Abortar também. Nós formamos em nossa mente uma associação utópica entre Lei e Justiça que simplesmente em termos reais non ecziste. “Estar na lei” é garantia de estar na lei. Só. Acabou. Não diz que algo é justo, correto, bom. Só diz que está na lei.

Tarja_PretaAssociamos nossos parâmetros a algo previamente imposto sem consulta alguma. Chamamos, por exemplo, as drogas ilícitas, de drogas, enquanto as de farmácia são apenas medicamentos, embora causem dependência, efeitos colaterais graves e, por favor, não queira errar um pouquinho na dosagem. Os casos mais graves estão relacionados às drogas psiquiátricas, mas ainda temos aí as aspirinas cotidianas, a pílula anti-concepcional, os anti-inflamatórios e antibióticos que os médicos amam prescrever só “por via das dúvidas” e que são capazes de destruir nosso corpo, enfraquecem tudo o que há dentro dele. Tudo. Mas tudo bem. Porque pode. Está na lei.

A lei não nos fala sobre nosso corpo, nossas necessidades, nossa situação individual. A lei também não nos fala sobre condições sociais, interferências políticas, meios de construção. A lei não é lei. Ela é questionável, contornável, discutível. Não é a toa que existe a advocacia, que existam “atenuantes”.

E a lei não é justa. Especialmente isso. É preciso urgentemente fazer essa desassociação. Vamos lá, voltando a guerra às drogas. O consumo de drogas é feito em todas as classes sociais, embora de diferentes formas, justamente de acordo com o meio, mas de maneira geral, dá para dizer que todo mundo consome drogas, não dá? Ricos e pobres, brancos e negros. Aqui tem um estudo legal sobre isso (mas com dados norte-americanos).

Mas olha só, é bem explícito quem é que pega cadeia por causa do consumo e da venda de drogas. Tá bem claro quem é que é perseguido, quem morre na porta de casa por causa da tal “guerra às drogas”. Até a notícia deixa claro: Quando é negro e pobre, é traficante. Quando é branco é “jovem de classe média” ou “fornecedor de drogas”, quando é político e futuro candidato a presidência da república, é só um mal-entendido.

Ou seja, se você nunca passou um tempo na cadeia, não significa que você não fez nada errado, significa apenas que você nunca foi pego. E você nunca ter sido pego diz muito mais sobre a posição social que você habita, a cor da sua pele, o seu local de fala, do que sobre a sua ética e caráter. Aliás, como lei não é o mesmo que justiça, agir dentro dela não é o mesmo que ser justo, nem honesto, nem de caráter. Se ser “criminoso” é ser apontado e culpado por uma sociedade e sistema carcerários extremamente corrompidos, desumanos e lotados de preconceitos, como vamos pautar nossa esperança nisso? Como vamos confiar nosso senso de justiça nisso? Quem é que está sendo criminoso? Em alguns casos, a própria existência é um crime, aos olhos de quem está em posição de julgamento (digno de intervenção militar, pena de morte, etc).

E ia falar mais um montão, sobre essa cena do senado atual, sobre porque as pessoas insistem tanto para nós ensinarmos nossos filhos a “obedecer”, seguir a lei e gostar de polícia. Mas já falei um montão, né? No fim das contas, é isso, ser fora-da-lei, as vezes é só questão de ser (existir e resistir). Um salve aos clandestinos.

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Clandestinos

Trago

Queimou garganta
Estirou voz
Abateu estômago

Rasgou-me inteira
Fibra a fibra

Escancarada
Aberta
Como cada célula inchada
Escorrida em cachaça

O trago esquentou
Peito
Pescoço
Virilha
Paixão antiga

O trago abriu ferimento
Afinou sangue
Escorreu

Em toda fluidez
Escorreu
Suor & Saliva

Pinga antiga
É respingo de vida

Trago

Leão de Chácara

baa6d6bb65a902ca94d4e372c106e346É para olhar cada passinho, viu? Conferir até os pés, para ver se estão andando em linha reta. Não deixa passar, senhor, não deixa passar. Revista. Revista antes de ir para qualquer lugar. Sabe que as vezes sobra, sempre sobra. Um detalhe que ficou para trás, jogado no fundo da bolsa. Ficou um bilhete, um lembrete, um cheiro ou anseio. Ficou ali e não pode, não pode não. Não deixa passar.

É para vigiar bem, viu? Olhar o celular. As vezes ele quer passar. Uma ligação, uma mensagem, um pedido de socorro, um grito de saudade. As vezes vai querer passar. Não pode. Confere os telefones, telegramas e sinais de fumaça também. Não deixa passar.

Apreende tudo. Olha bem se não deixou nem um sinal, nem uma chance. A chance é um grande perigo. A possibilidade é um buraco imenso, obscuro, cujo fundo ninguém sabe necessariamente onde vai dar. Mas deve ser de concreto. Provavelmente é de concreto. Você sabe, é concreto. Dá para se esborrachar.

Vê se não tem nenhuma dessas pelo caminho. Coberta pela grama do acaso, pelas flores da inocência, as folhas da confiança, o mato da fraqueza. Confere em baixo de tudo. E tapa esse buraco. Tapa mesmo, sem dó, nem madeira. Com o concreto da frieza. Faz fortaleza. Pavimenta com orgulho ou o andar é caminho certo para se esborrachar. Dá para se esborrachar.

Leão de Chácara. Observa cada cantinho. Dá uma olhada nas esquinas, no escuro das noitadas, nas bebidas espalhadas, nas portas, buracos e brechas que podem sobrar. Se for preciso barra, confisca, cerca, aprisiona. Aprisiona mesmo. Sentimento nenhum pode passar. Dor nenhuma pode transbordar. Cerceia. Mantém. Retém.

Confere os dedos, os olhos, as cartas, e-mails, suspiros e palavras que podem fraquejar. Não deixa passar.

Colorir, só dentro das linhas.

Leão de Chácara

COROA

Dizem que um dos nossos chacras fica no topo da cabeça. Só pode. Se não tiver, acabei de instituí-lo. É mágico o topo da nossa cabeça. Parece o início de uma estrada, bem feita, pavimentada, prontinha para levar o que entrar por ali para o resto do corpo todo. Quando bate ali, sinto tudo circulando, chega às mãos, aos pés, passa pelas pernas, atinge a barriga. O sol, a água do chuveiro, a chuva, a folha que cai. Tudo o que passa pelo topo da cabeça me atinge inteira. O resto é só respingo.

Sahasrara o nome do chacra, não é? Eu conheço pouco. Não sei pronunciar. Sei que deve ter cor de alfazema. Embora tudo o que é considerado coronário costume ser dourado ou branco. Pode ser também. Conheço pouco. Não sei ensinar. Sei que deve ter um chacra. E deve ter cor de alfazema. Eu acho.

Ou não. Pode ser outra coisa também. Pode ser também minha moleira que esqueceu de fechar e fica deixando a vida toda passar por ali, circular pelo meu corpo, me botar em movimento. Sei pouca coisa. Sei a sensação de plenitude. Ia dizer que é grande a sensação de plenitude, mas não é. Não tem grandeza nem uma. Também não é pequena. Só é plena. Cheia, completa.

Tenho deixado mais a água bater, a lua iluminar e o sol aquecer, embora esse bichinho eu reconheço que seja um pouco agressivo as vezes, chacra nenhum dá conta de não se esconder na sombra. Tenho aproveitado bem as mãos, que me passam por ali, deixo o carinho de quem quer afofar o pouco cabelo que me resta se espalhar, num cafuné que sinto até nos dedos dos pés.

Tenho valorizado o topo da cabeça. Esse lugar onde a mãe beija e parece que o amor nos toma por inteiro. Esse lugar onde eventualmente eu paro de existir. Deve, inclusive, existir um ponto, um milímetro certo, uma latitude e longitude exatas onde o meu corpo físico acaba e acima de mim fica só o ar. O universo e toda a energia que o compõe. E eu ali embaixo, absorvendo essa vida pelo topo da minha cabeça.

Deve ter alguma coisa. Não é possível. Um chacra, uma moleira, uma auréola, o final do meu cérebro ou o início do meu ser – não sei bem onde começo e onde termino – uma coroa. Deve ser uma coroa. Qualquer coisa que me ponha nessa posição de rainha de mim, qualquer coisa que me dê tanta verdade circulando pelo corpo, qualquer coisa que explique a sensação tão boa de tudo o que passa por aqui.

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COROA

Lixo

Veja bem que loucura, há algum tempo atrás escrevi esse texto e, realmente, estava vivendo uma fase com muitas gavetas na época. Hoje falo de lixo, porque tenho andado mais próxima dessa ideia, Acredito que isso ainda vá evoluir mais (oremos).

Mas descobrir o lixo foi algo maravilhoso para mim. E a ideia do lixo tem chegado a mim de diversas formas. “Joga fora”. “Abandona”. Me falam tantos, de tantos lugares. Que tive que ouvir, né? É difícil demais. A gente ignora durante um tempo. Mas tem uma hora que tem que escutar.

E não é que a ideia foi boa? Rapaz. E foi.

Quando veio, veio inesperada. Veio assim da amiga de uma amiga que sem querer entrou na minha casa. E mudou minha vida em duas frases, minha gente. Olhou a minha louça não lavada, o chão sem varrer, a roupa no tanque e a cara de cansada.

Como pode? A casa tão bagunçada e a gente tão cansada? A bagunça é cansativa, vixe. Exaustiva. Ela te suga para dentro dela. Você se sente lá, mais um serzinho, miudinho em meio a tanta coisa acontecendo. Não dá nem pra ver o que é bom e o que é ruim, o que ainda presta e o que não, na bagunça.

Tudo é muito confuso. Nossa. Facinho de se perder.

E a amiga da amiga que entrou na minha casa me olhou e disse: Lava essa louça. Disse com uma doçura que só ela tinha. Mas disse: Lava essa louça. Eu respondi que estava muito difícil, que eu não sabia por onde começar.

Sabe, quando tudo parece dolorido demais? Cada passo parece a toa, em vão. Cansativo, nossa. Exaustivo.

E realmente, na bagunça. a gente não sabe por onde começar.

Ela me disse a segunda frase: Joga fora tudo o que você não usa mais. Ai, deliciosas! Deliciosas essas palavras! Mágicas! Joga fora tudo o que você não usa mais.

Quão grata eu sou, por quem entrou na minha casa e me mandou lavar a louça e jogar fora tudo o que eu não usava mais. Desde então tenho feito isso. Me preocupado com essa limpeza e com remover o excesso.

Aprendi aí que, muitas vezes, a bagunça é só excesso. Parece uma zona, mas só tem coisa demais. Fica muito mais fácil organizar esvaziando o espaço.

E vê bem: Dá pra jogar uma porrada de coisa fora. Roupa, papel, conta, cabelo, bilhete, passagem, dúvida, rancor, amor antigo, vício, mania, ego, nossa. Muita coisa. Nossa. Tem muita coisa sobrando. Daí não tem espaço que dê conta mesmo. E sufoca. Sufoca sim.

Tem gente que explode também, mas olha só, ainda é questão de muito em pouco espaço.

Dá para trabalhar com o espaço que a gente tem. Esvaziar a gaveta, o armário, o peito, o tempo, a mente, a casa, a alma, a pia e a pele. Dá para colocar ali só o proveitoso. Joga fora tudo o que você não usa mais.

Desde então comecei a lavar a louça. Também tenho andado por aí me despindo.

Lixo

Todas as letras

Tenho umas inquietudes difíceis de se lidar. A pressa da juventude e esse medo que a maturidade me trouxe, sem o meu consentimento, se juntam, nessas inquietudes. Difíceis de se lidar.

Mariposear. Não acredito que não oficializaram esse verbo ainda. Dessas noites em que cérebro, alma, coração, estômago, língua e sistema reprodutor se encontram pra prosear. Indo e vindo, num bater de asas rápido, confuso, desencontrado. Mariposeando.

Essa inquietude. Que não deixa a gente perceber onde está a dor, onde esté a cura, para onde a gente corre, do que é que a gente foge, pra que lado a gente vai, qual a cor. Qual a cor? Qual a cor da tua inquietude? Onde queima tua aflição? Que cheiro tem teu medo?

tumblr_m8wt9lR4fd1qh1rzmo1_500Mariposeando. Circulação sem fim de todas as sensações. E os sonhos. E os pensamentos. E aquilo meio sem forma, nem contexto, que se passa aí dentro de um lado pro outro. O formigamento que começa nas pontas dos pés e o arrepio magnético dos fios de cabelo. Mariposeamento.

Essa inquietude. Uma das dores em se ver tão universo. E tão pequenininha. Quem guenta ser desse tamanho minúsculo tem todo esse espaço pra conhecer dentro de si? Essa pressa em andar pela própria mata adentro. E o mariposeamento que impede de parar. Descansar. Contemplar.

Que pressa em voar é essa? Deu nem tempo de ver a cor do céu ainda.

Quanto espaço para se andar. E essas dores nas pernas que impulsionam, mas não deixam continuar.

Todas as letras

Lidocaína

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Não me pegam as anestesias. De jeito nenhum.

E nem é como se fosse toda forte. Do contrário. Machuco demais, sangro fácil, a pressão cai, três segundos de sal embaixo da língua e já recuperou. Remédio que não faz nem cócegas, em mim já curou. O doce que ninguém sentiu, já bateu aqui faz tempo e ficou. E durou e durou.

Sinto tudo. Tudinho. Amoleço no primeiro trago, enlouqueço na primeira dose, entrego. Entrego. Deixo tudo entrar e estraçalhar. Fazer barulho. Bagunça. Até placebo deve funcionar.

Mas não me pegam as anestesias. De jeito nenhum.

É coisa simples. Restauração no dente. Uma, duas, três, quatro, cinco agulhadas. E não para. Por algum motivo o corpo – sempre aberto – não deixa o efeito entrar. Rejeita, renega.

“Nossa, você é resistente, né?”

Sou nada doutor. Tão fraquinha. Sinto tudo. Tudinho.

Só não me pegam as anestesias. De jeito nenhum.

E assim sigo. Assim o corpo pede. Deixa tudo chegar, modificar, fazer barulho, bagunça. Só não para de sentir. Tudo. Tudinho. Um corpo tão contente em ser assim fraquinho que se faz de forte, na primeira oportunidade de resistir à apatia.

Deixa doer.

Lidocaína

Gaveta

Nada fede como o mofo. Nem a sujeira, a ânsia, o excremento, o lixo, as toxinas dos bichos.

O cheiro do que foi deixado ao tempo. O guardado. Não há ação química mais poderosa do que o tempo. É o que adoece, entristece, empobrece e destrói. Destrói. Só Cronos é capaz de transformar o que há de mais limpo, belo e brilhoso na mais empoeirada, embolorada, rançosa e pestilenta das coisas.

E tem razão. Tem razão. Entregamos a ele nossas maiores virtudes, nossos melhores presentes. Jogamos à ação do tempo toalhas molhadas, louças novas, roupas garbosas, hábitos revigorantes. Nossos melhores amores, maiores sonhos e os mais poderosos dons. Cedemos.

Quanta negligência. Cremos no vácuo. Em um congelamento automático, indolor e conservatório – que nunca fora alcançado pela ciência, mas que temos certeza de ter nas mãos – capaz de nos devolver absolutamente intacta qualquer coisa que larguemos nas mãos do tempo. Quanta ingenuidade!

Cronos, o deus tempo, devora os filhos
Cronos, o deus tempo, devora os filhos

Jogado no canto da sala ou embrulhado em papel fino no fundo do armário: Tudo o que está à mercê do tempo está ameaçado. O tempo é uma sentença de morte.

E tem razão. Tem razão. Depositamos nele uma confiança estúpida e a responsabilidade imensa de lidar com o que não conseguimos, como se estivéssemos nos deitando no colo de um pai, que nos consolará e limpará toda a nossa sujeira. Mas Cronos é capaz de transformar a menor das manchas em uma esdrúxula podridão.

O pequeno incômodo físico, nos braços do tempo, se torna um câncer incurável espalhado por cada parte do corpo.

Nada fede como o mofo. Vamos abrir as gavetas.

 

Gaveta

Balança

Eu sou uma constante busca pelo equilíbrio. O centro. A moderação vertical. A balança.

E ainda me julgam harmônica. Rá! Ainda me cobram a paz de espírito, a plenitude exuberante dos centrados. Rá! Pouco sabem sobre o equilíbrio, os que o desejam pleno. Pouco sabem sobre os ferros e o peso dos pratos da balança. A força e a dor explosivas de se ficar ali, parada, estática, buscando insistentemente sustentar de forma igualitária todo o peso recebido.

Não há paz no equilíbrio.

Há, sim, um desejável controle e um incontrolável desejo de tudo. Tudo.

O equilíbrio é essa fome de mundo. De paz e de guerra, de limpo e de sujo, de amor e de ódio. O equilíbrio é nada menos do que uma fusão de excessos. Uma perdição de opostos, um cabo-de-guerra.  O ponto exato de uma corda bamba que está sempre prestes a arrebentar. E se mantém.

Sem como, sem porque. Se mantém.

Eu sou um berro silencioso. Um segredo em aberto. Um pecado santo.

Eu sou todas as lutas do mundo e as minhas próprias lutas, lutando entre si. Em batalhas intermináveis, doloridas, cansativas, nas quais não há sequer a possibilidade de haver vencedores. A balança não é a estabilidade, a calmaria pós-guerra. É o próprio combate.

O equilíbrio é a tranquilidade agitada de quem quer sustentar o mundo. É a mais verdadeira das farsas.

Não há paz no equilíbrio.

Há, sim, um desinteresse obsessivo e uma obsessão desinteressada pelo nada de tudo o que é pleno. O vácuo de tudo o que é cheio. A necrose de cada pedaço saudável dos corpos desequilibrados do universo.

Balança